
(…) Diana ficou um momento com os olhos meio fechados, a inalar o ar perfumado. A cada inspiração sentia que se estava a aproximar mais e mais de um lugar celestial. Mas voltou a este mundo quando Zeynep Hanim tirou os sapatos e começou a esfregar os pés nus na terra.
- Vem querida faz o mesmo.
Com a mesma atitude que tivera na fonte, Diana tirou os sapatos e fez o que lhe diziam.
- Já sei, não faz diferença nenhuma perguntar isto, mas ainda quero saber porque tenho agora os pés sujos.
- As rosas são sempre cautelosas, não vá a beleza da dádiva fazê-las esquecer quem lhas deu.
- Claro! Como é que não pensei nisso?
- As rosas nunca, sequer por um minuto, esquecem que a sua existência é uma dádiva da terra e que a terra é a fonte dessa existência. Sabem muito bem que, quando chega a sua hora, murcham e caem no chão como sementes, e que a terra só aceita as sementes das rosas que não se esqueceram de onde vieram. Ao pisares a terra com os pés nus, mostramos às rosas que também não nos esquecemos dela. As rosas gostam disso.
Zeynep Hanim tornou a calçar as sandálias.
- Tudo o que falámos até agora tem sido uma preparação para começarmos a viagem para ouvir as rosas. Tudo foi acerca de nós, as pessoas na demanda. Mas, no jardim, quem demanda já não deve existir, deve deixar-se absorver completamente pelas rosas. Temos de dar-lhes tudo o que temos, a nossa mente, o nosso coração, a nossa alma… Tudo. Se estiveres pronta, podemos começar.
Diana assentiu.
- Muito bem… O que sabes acerca de rosas? – perguntou Zeynep Hanim.
- Nada, na sua perspectiva, absolutamente nada.
- Excelente. É o melhor começo. Agora posso contar-te a regra de ouro para ouvir rosas.
- Regra de Ouro?
- A regra de ouro manda: conhece a tua rosa.
Zeynep Hanim acariciou delicadamente as pétalas da rosa cor-de-laranja à sua esquerda antes de continuar.
- Só podemos aprender sobre uma rosa através de uma rosa. É a única maneira de a conhecer realmente.
Começaram a caminhar para o centro do jardim. Ao fim de algum tempo Zeynep Hanim parou de súbdito e inclinou-se para a rosa amarela que tinha á sua frente.
- Que se passa, Flor Amarela? Nunca te vi chorar antes. Porque choras no jardim da felicidade?
Diana observava-a com toda a atenção. A rosa não emitiu som algum, mas Zeynep Hanim parecia ouvir atentamente, abanando a cabeça de vez em quando em assentimento.
- Tenho tanta pena, não fazia ideia, Flor Amarela – disse para a rosa. – Se a nossa convidada concordar, gostaria e ouvir a tua história do princípio.
Zeynep Hanim virou-se para Diana e perguntou:
- A Flor Amarela hoje está perturbada. Queres ficar um bocadinho e ouvir o que ela tem para dizer?
- Que quer a senhora dizer? Sabe que não consigo ouvir.
- Mesmo que não a possas ouvir, ela ouve-te. Ficamos?
- BEM, sinto-me um pouco estranha, mas está bem.
Diana sentou-se no chão onde Zeynep Hanim indicou, com as pernas debaixo o corpo. Que lhe interessava que as calças brancas se sujassem, se ali sentada podia dar conforto emocional a uma rosa!
- Vou partilhar contigo o que a Flor Amarela está a dizer enquanto me conta a sua história – informou Zeynep Hanim. Depois virou-se para a rosa. – É a Diana, irmã gémea da Maria.
- Gosto em conhecer-te, Diana – Disse a Flor Amarela pela boca de Zeynep Hanim. – Teria pensado que era a Maria se o rouxinol amarelo não me tivesse dito que não.
- Gosto em conhecer-te – disse Diana, como se falasse para sim mesma.
- Bem – continuou Zeynep Hanim. – Conta-nos que te está a deixar tão triste.
- Desculpa – disse Flor Amarela. – Sei que está habituada a ver rosas felizes neste jardim, mas faz hoje anos que a minha velha amiga Vénus perdeu o perfume. Fico assim uma vez por ano, tenho tanta pena…
- Não faz mal, Flor Amarela. Por vezes a felicidade exprime-se melhor nas lágrimas vertidas por uma amiga… Mas, conta-nos como foi isso? Nunca me teria ocorrido que uma amiga tua perdesse o perfume.
- Bem – respondeu a Flor Amarela -, vou começar por lhe falar da primeira rosa perfumada, que deu origem a todas nós, dado que está tudo relacionado com a tragédia por que a Vénus passou…
>> Um dia, o nosso majestoso Sultão, que queria criar uma rosa que ostentasse o seu perfume especial, borrifou o solo do seu jardim com o seu perfume régio. Mais tarde, regou o jardim com o elixir da vida, para que a sua rosa nunca murchasse. E quando finalmente floresceu, ele chamou-lhe <Rosa do Nada>. O nosso Sultão deu-lhe este nome de propósito para que a sua rosa nunca se esquecesse que não tinha cheiro sem ser o perfume do Sultão. Na minha terra, uma rosa só é rosa se tiver perfume.
>> Mais tarde, o Sultão quis que o perfume fosse conhecido de toda a gente, e por isso deixou que a rosa fosse plantada fora dos jardins imperiais. A rosa, que já não seria regada com o elixir da vida, murcharia um dia, mas com o tempo a sua prole levaria o perfume do Sultão a todos os cantos do reino.
>> Vénus e eu somos suas descendentes, e fomos plantadas na praça de uma aldeia. Só abrimos com o único propósito e dar a conhecer o perfume do Sultão, e assim, só queríamos ser apreciadas pelo perfume dele que levávamos.
>> Havia dois tipos de pessoas na aldeia: ‘Aqueles-como-a-Maria’, e os ‘Outros’. Aqueles-como-a-Maria eram os que podiam reconhecer que tínhamos o perfume do Sultão; e por isso se interessavam pelo nosso cheiro acima de tudo. Pelo contrário, os Outros só davam importância à nossa cor, aos pés, às pétalas, ao que fosse visível…
>> Um dia chegou à aldeia um mercador para vender rosas artificiais. Falsas, sem vida, sem cheiro… Não podíamos ter imaginado que haveria alguém interessado nelas. Mas, dentro de pouco tempo, os Outros começaram a sussurrar: ‘O mercador tem rosas bonitas. As pétalas são de tecido sedoso, as cores nunca fenecem e, melhor ainda, os pés não têm espinhos.’
>> Em breve o mercador vendia muitas rosas e a aldeia transformou-se na ‘aldeia das rosas artificiais’. Aqueles-como-a-Maria não toleravam isto e foram abandonando a aldeia. Por fim, eu e a Vénus ficámos com duas coisas: a necessidade de sermos apreciadas e os Outros.
>> Nessa altura, não podíamos prever o desastre a que a situação nos levaria. Pouco depois de Aqueles-como-a-Maria terem desaparecido, a pouco e pouco, começámos a metamorfosear-nos naquilo a que os Outros davam valor, na esperança de ganhar o seu afecto. E como eram só as características exteriores que prezavam, preocupávamo-nos cada vez mais com o nosso aspecto. Esforçávamo-nos por estar direitas como as rosas artificiais, tentávamos prolongar o tempo em que tínhamos as folhas. Nem sequer chorávamos em alturas emotivas, para não enrugar as pétalas. E depressa por falta de cuidado, o nosso perfume começou a desvanecer-se.
>> Moldámo-nos às expectativas dos Outros, assumindo uma forma a seguir à outra. Matizámos as cores, uma e outra vez. Os Outros diziam: ‘Cresce mais’, e nós obedecíamos em silêncio. Primeiro moldavam-nos como queriam e depois não nos poupavam elogios.
>> Porém, apesar disto tudo, sentíamos, no fundo, que não éramos apreciadas. Só os interessados no nosso perfume nos podiam apreciar realmente. Porque é o perfume que faz uma rosa. O sentimento que os Outros tinham por nós só podia ser admiração.
>> Eu tinha consciência disto tudo, mas a Vénus comportava-se como se não se apercebesse. Tentei avisá-la. Disse-lhe que os Outros eram como um verme invisível que encontrou o nosso leito de júbilo carmesim, destruindo as nossas vidas. ‘Temos de escapar imediatamente para o lugar onde estiverem Aqueles-como-a-Maria’ disse-lhe. Ela não prestou atenção às minhas palavras. ‘Tu não és normal’. Disse-me. Não a podia censurar; ela tinha razão. Havia tantas rosas artificiais na aldeia que já era uma regra uma rosa não ter perfume.
>> Tentava eu convencê-la quando apareceu um carreiro de formigas na nossa frente, que formou estas palavras na terra: ‘Objecta aos Outros o que te roubam de Ti’. A Vénus olhou-as desdenhosamente e resmungou, ‘Malditas formigas, estão por todo o lado.’
>> Por fim, percebi que não podia ajudar a Vénus e decidi pelo menos cuidar de mim. Tinha de sair da aldeia o mais depressa possível, mas não sabia como o fazer. As rosas não têm pés, como sabem. Por conseguinte, esperei que aparecesse alguém que me arrancasse pela raiz e me levasse dali.
>> Por fim, eles chegaram: um homem corpulento, uma criança magra e um burro cinzento. Embora o homem e a criança parecessem esgotados, não montavam o burro andavam a seu lado. Era tão estranho, eu não conseguia perceber aquilo.
>> Caíram no chão, aliviados, debaixo de uma árvore próxima. O rapaz virou-se para o pai. ‘Pai, onde é que erramos? Estou tão cansado que quase morremos pelo caminho.’
>> - Cala a boca – disse o pai, e deu um sopapo na orelha ao miúdo. – Andar a pé é sempre assim.
>> - Mas temos um burro, pai! E ele é forte.
>> - Cala-te, já te disse! Só dizes disparates, Não ouviste as pessoas quando andámos os dois no burro? ‘Olhem para os aqueles brutos insensíveis, duas pessoas em cima de um pobre burro!’ Sabe Deus o que pensarão de mim lá na aldeia.
>> - Sim, foi o que disseste quando me mandaste desmontar. Mas pelo menos tu ias confortável, pai.
>> - Sim, mas depois mais alguém disse: ‘Olhem para aquele homem cruel! Vai de burro e pobre criança mal pode andar.’ Conheço esse homem. É um fala-barato. Sabe Deus o que os outros vão pensar na aldeia.
>> - Bem, pai, foi então que desmontaste do burro e me puseste em cima dele. Pelo menos eu ia confortável.
>> - E depois? Que disseram as pessoas? ‘Olhem só a falta de respeito daquele rapaz, sentado no burro quando o pai mal se consegue arrastar.’ Não estou para que digam que filho meu me falta ao respeito. Sabe Deus o que os outros vão pensar na aldeia.
>> - Mas, pai! Depois ficámos os dois apeados.
>> - Cala-te, rapaz tolo. Pelo menos agora ninguém diz mal de nós.
>> Nesse preciso momento, um homem ali perto virou-se para outro e disse: ‘Olhem para aqueles tolos! Têm um burro, mas vieram o caminho todo a pé!’
>> Ao ouvir isto, o pai corou até à raiz dos cabelos. O rapaz sorria. Parecia que tinha compreendido o que o pai não conseguira. As crianças compreendem mesmo.
>> Para atrair a atenção da criança, usei toda a força que tinha para libertar o resto do meu perfume. Assim que o perfume régio o atingiu, o rapaz virou-se para mim. As crianças conhecem muito bem o perfume do Sultão.
>> Quando caiu a noite, ele colheu-me com ternura e pôs-me em cima do burro.
>> Antes de sair dali, a Vénus falou comigo pela última vez. ‘Flor Amarela, dizes que te vais embora para conservares o teu perfume, mas parece que ele já se desvaneceu há muito.’ Ao ouvir isto, uma lágrima caiu-me pelas pétalas abaixo e apercebi-me de que Vénus perdera completamente o seu. Porque uma rosa é o espelho de outra rosa; quando olham uma para a outra, vêem o próprio perfume ou a ausência dele.
>> Na manhã seguinte, quando o pai do rapaz deu por mim, avisou o filho para que não carrega-se o burro com ‘coisas inúteis’. Depois levou-me à feira e vendeu-me. Depois de andar pelas mãos de muitos, finalmente um amante de rosas trouxe-me para o seu jardim para recuperar o meu perfume. Tenho sido tão feliz aqui, mas não posso deixar de me lembrar da Vénus em cada aniversário da nossa despedida.>>
Houve um breve silêncio.
- Se ela já terminou a sua história – disse Diana -, queria perguntar uma coisa à Flor Amarela.
- Podes perguntar querida – disse Zeynep Hanim.
- Flor Amarela, as rosas verdadeiras como tu devem ficar aborrecidas com a existência de rosas artificiais, não devem?
- Mas por que razão? – retrucou Flor Amarela pela boca de Zeynep Hanim. – As rosas artificiais só existem porque há rosas verdadeiras. Quem faria a imitação de uma coisa que não é valiosa? (…)
In A Rosa Perdida de Serdar Ozkan
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